Carta às Esquerdas
Boaventura de Sousa Santos – Visão - 25 Agosto de
2011
Não ponho em causa que haja um futuro para as
esquerdas
mas o seu futuro não vai ser uma continuação linear
do seu passado.
Definir o que têm em comum equivale a responder à
pergunta: o
que é a esquerda? A esquerda é um conjunto de
posições políticas
que partilham o ideal de que os humanos têm todos o
mesmo valor,
e são o valor mais alto. Esse ideal é posto em causa
sempre que há
relações sociais de poder desigual, isto é, de
dominação. Neste caso,
alguns indivíduos ou grupos satisfazem algumas das
suas
necessidades, transformando outros indivíduos ou
grupos em meios
para os seus fins. O capitalismo não é a única fonte
de dominação
mas é uma fonte importante.
Os diferentes entendimentos deste ideal levaram a
diferentes
clivagens. As principais resultaram de respostas
opostas às
seguintes perguntas. Poderá o capitalismo ser
reformado de modo a
melhorar a sorte dos dominados, ou tal só é possível
para além do
capitalismo? A luta social deve ser conduzida por uma
classe (a
classe operária) ou por diferentes classes ou grupos
sociais? Deve
ser conduzida dentro das instituições democráticas ou
fora delas? O
Estado é, ele próprio, uma relação de dominação, ou
pode ser
mobilizado para combater as relações de dominação? As
respostas
opostas as estas perguntas estiveram na origem de
violentas
clivagens. Em nome da esquerda cometeram-se
atrocidades contra a
esquerda; mas, no seu conjunto, as esquerdas
dominaram o século
XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo)
e o mundo
tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. Este
curto século de
todas as esquerdas terminou com a queda do Muro de
Berlim. Os
últimos trinta anos foram, por um lado, uma gestão de
ruínas e de
inércias e, por outro, a emergência de novas lutas
contra a
dominação, com outros actores e linguagens que as
esquerdas não
puderam entender. Entretanto, livre das esquerdas, o
capitalismo
voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a
ser urgente
reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie.
Como
recomeçar? Pela aceitação das
seguintes ideias.
Primeiro, o mundo diversificou-se e a diversidade instalou-se
no
interior de cada país. A compreensão do mundo é muito
mais ampla
que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo
sem interculturalismo.
Segundo, o capitalismo concebe a democracia
como um instrumento de acumulação; se for preciso,
redu-la à
irrelevância e, se encontrar outro instrumento mais
eficiente,
dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia
de alta
intensidade é a grande bandeira das esquerdas.
Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de
dignidade
humana; a defesa desta é uma luta contra o
capitalismo e nunca com
o capitalismo (no capitalismo, mesmo as esmolas só existem
como
relações públicas).
Quarto, a experiência do mundo mostra que há imensas
realidades não capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo cooperativismo,
à espera de serem valorizadas como o futuro dentro do presente.
Quinto, o século passado revelou que a relação dos humanos
com a natureza é uma relação de dominação contra a qual há que lutar; o
crescimento económico não é infinito.
Sexto, a propriedade privada só é um bem social se for uma
entre várias
formas de propriedade e se todas forem protegidas; há
bens comuns
da humanidade (como a água e o ar).
Sétimo, o curto século das esquerdas foi suficiente para
criar um espírito igualitário entre os humanos que sobressai em todos os
inquéritos; este é um
património das esquerdas que estas têm vindo a
dilapidar.
Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação
para florescer,
do racismo ao sexismo e à guerra e todas devem ser
combatidas.
Nono, o Estado é um animal estranho, meio anjo meio
monstro,
mas, sem ele, muitos outros monstros andariam à
solta, insaciáveis à
cata de anjos indefesos. Melhor Estado, sempre; menos
Estado,
nunca.
Com estas ideias, vão continuar a ser várias as
esquerdas, mas
já não é provável que se matem umas às outras e é
possível que se
unam para travar a barbárie
que se aproxima.
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