Guerra na África é nova corrida imperialista, diz Fiori
Recomendado pelo Prof. Antônio Maués, Dr em Direito Constitucional, por ELEONORA DE LUCENA, DE SÃO PAULO, 04/04/2011 - 07h01
A guerra na Líbia faz parte de uma nova corrida imperialista
que vai se aprofundar, diz José Luís Fiori, coordenador do programa de
pós-graduação em economia política internacional da UFRJ. Para ele, potências
disputam recursos estratégicos na África, mas os conflitos não têm a ver apenas
com o petróleo. Nesta entrevista, Fiori fala também sobre o poder dos EUA, que
ele enxerga vivendo uma crise se crescimento. A seguir a íntegra da entrevista.
Folha -Como o sr. analisa a guerra na Líbia?
*José Luís Fiori-" É evidente que não se trata de uma
discussão sobre o direito a vida dos líbios, ou sobre os chamados direitos
humanos, e menos ainda, sobre democracia. Nesta,
como em todas as demais intervenções deste tipo, de europeus e dos EUA, feitas
neste último século, jamais se esclarece a questão central de quem tem o direito
de julgar e arbitrar a existência ou não de desrespeito aos direitos humanos em
algum país em particular, e quem determina o lugar em que a "comunidade
internacional" deve ou não intervir para defender vidas e direitos.
Com relação a quem arbitra, são sempre os mesmos países que Samuel Huntington
chamou de "diretório militar" do mundo, ou seja, EUA, Inglaterra e
França. E, com relação aos critérios da arbitragem, é óbvio que este diretório
jamais intervém contra um país, ou contra um governante aliado, por mais
autoritário e anti-democrático que ele seja, e por mais que ele desrespeite os
direitos defendidos pelos europeus e pelos norte-americanos. Independentemente
do que se pense sobre o fundamento e a universalidade dos direitos humanos, não
há a menor dúvida que, do ponto de vista das relações entre os Estados dentro
do sistema mundial, eles sempre são esgrimidos e utilizados como instrumento de legitimação das decisões
geopolíticas e geo-economicas das grandes potencias. Por isto, as decisões
sobre este assunto nos foros internacionais são sempre políticas e
instrumentais e variam segundo a vontade e segundo os interesses estratégicos
destas grandes potências.
A guerra é sobre o petróleo?
O que está em jogo na Líbia não é apenas Petróleo. Nem tudo no mundo da geopolítica e da luta
de poder entre as grandes e médias potências tem a ver com energia, ou mesmo,
com economia. Neste caso, está em jogo o controle de uma região fronteiriça da
Europa, parte importante do Império Romano, e território privilegiado do
alterego civilizatório da "cristandade". Foi por onde começou o
colonialismo europeu, no século 15 e depois, de novo, no século 19. Acho que já
estamos assistindo uma nova corrida imperialista na África, e que não é
impossível que se volte a cogitar de alguma forma renovada de colonialismo.
Como seria essa corrida imperialista? O que deve acontecer
por lá? As revoltas árabes em curso terão algum impacto no poder dos Estados
Unidos na região e no mundo?
Durante a década de
90, generalizou-se a convicção de que a África seria um continente inviável e
marginal dentro do processo vitorioso da globalização econômica. Tratava-se de
um continente que não interessaria às grandes potências nem às suas corporações
e bancos privados. Mas a África não é tão simples nem homogênea, com seus 53
Estados, cinco grandes regiões e seus quase 800 milhões de habitantes. Um
mosaico gigantesco e fragmentado de Estados, onde não existe um verdadeiro
sistema estatal competitivo, nem tampouco se pode falar de uma economia regional
integrada De fato, o atual sistema estatal africano foi criado pelas potências
coloniais europeias e só se manteve integrado, até 1991, graças à guerra fria e
à sua disputa bipolar. Depois da guerra fria e do fracasso da intervenção dos
Estados Unidos na Somália, em 1993, os EUA redefiniram sua estratégia para o
continente negro: propondo, como objetivo central, o crescimento econômico,
através dos mercados, da globalização e da democracia. Mas de fato, a preocupação dos Estados Unidos com a África se restringiu
até o fim do século 20, quase exclusivamente, à disputa das regiões
petrolíferas e ao controle e repressão das forças islâmicas e dos grupos
terroristas do Chifre da África. Mas
deverá ocorrer uma mudança radical, nas próximas duas décadas, do comportamento
norte-americano e dos europeus, graças à invasão econômica da China da Rússia,
da Índia e, inclusive, do Brasil. A África será de novo um ponto central da
nova corrida imperialista que já está em curso e que deverá se aprofundar ainda
mais na próxima década Neste período, não é improvável, inclusive, que as
velhas e novas potências do sistema mundial, envolvidas na disputa pelos
recursos estratégicos da África, voltem a pensar na possibilidade de conquista
e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos que foram criados
pelos próprios colonialistas europeus. E é nesta perspectiva que acho que
deve refletir sobre a reação européia e norte-americana frente às revoltas
árabes. E, em particular, no caso da intervenção militar na Líbia, comandada
pela Otan e liderada pelos EUA, Inglaterra e França.
Os EUA estão ameaçados de perder poder no Oriente Médio?
Sempre existe o risco de perda do controle que já tinham
conquistado na situação anterior à rebelião. Mas, neste caso, não vejo este
risco. Pelo contrário, acho que são os mesmos de sempre que estão
redistribuindo as cartas e manipulando as divisões internas dentro dos governos
e dos envolvidos nas rebeliões. Quando
houver risco real, reprimirão como fizeram no Bahrein. Sempre que possível através
das mãos de terceiros.
Para o sr. não há perda da hegemonia norte-americana?
Os EUA estão enfrentando neste momento os problemas,
contradições e incertezas produzidas pela sua mudança de status _ da condição
de "potência hegemônica do mundo capitalista, até a década de 1980, para a
condição de "potência imperial", assumida progressivamente depois de
1991. Poderia até se chamar de uma
"crise de crescimento", e não uma "crise terminal". E o seu
"declínio relativo", de que tanto se fala na imprensa, com relação à
expansão asiática e à sua provável ultrapassagem econômica pela China ,não
atingirá a posição dos EUA, como pivot do sistema mundial, nas próximas duas
décadas, pelo menos.
Este novo estatuto imperial dos EUA deve fazer com que mudem
sua forma de administrar o seu poder global. Esta mudança será lenta e
complicada, dentro e fora dos EUA. Muitos analistas confundem a trepidação
própria deste processo de mudança com uma "crise terminal" do poder
americano no mundo. A partir de agora, e
cada vez mais, os EUA deverão adotar uma posição mais distante e arbitral com
relação às lutas de poder em todos os tabuleiros geopolíticos do mundo. Só
intervindo em última instância e, de preferência, através das mãos de terceiros
países. E deverão promover ativamente todo tipo de divisões internas, dentro e
fora dos principais países dentro de cada um destes tabuleiros. Seguindo o
modelo clássico da administração imperial da Grã-Bretanha, durante o século 19.
Isso não acontecerá sem conflitos. Mas este será o jogo que estará sendo jogado
nas próximas duas décadas: de um lado, os EUA atuando como cabeça de império,
se distanciando, e só intervindo em última instância, e, do outro, as demais
potências regionais tentando escapar do cerco americano, através de coalizões de poder que neutralizem o divisionismo
estimulado pelos EUA.
Quais as diferenças em relação ao império britânico?
Trata-se de um
sistema imperial muito mais complexo e instável do que foi o império britânico,
porque ele é supra-nacional sem ser colonial. E envolve, potencialmente, 195
Estados e economias nacionais, que são ou se consideram soberanos. As
fronteiras deste império não são fixas nem territoriais e podem ser redefinidas
a cada momento pelo poder global militar e financeiro dos EUA. E, dentro deste sistema, a expansão
contínua do poder e da riqueza americana promovem e fortalecem algumas novas
potências emergentes que deverão competir com os EUA, nas próximas décadas,
pelas hegemonias regionais do mundo. É importante sublinhar que este novo
tipo de império não exclui a possibilidade de derrotas ou fracassos militares
localizados dos EUA. Pelo contrário: é a
própria expansão vitoriosa dos EUA - e não o seu declínio_ que vai promovendo
os conflitos e as guerras. E, do ponto de vista estritamente militar, o
essencial para o novo poder imperial americano é impedir que alguma potência
regional ameace a sua supremacia naval em qualquer região do mundo. E, é óbvio,
impedir que ocorra uma guerra hegemônica capaz de atingir a sua supremacia
militar global.
Não há limites para este poder?
É óbvio que este novo poder imperial não é absoluto nem será
eterno. Como já foi dito, sua expansão contínua cria e fortalece poderes
concorrentes. E desestabiliza e destrói os equilíbrios e as instituições,
criadas pelos próprios EUA, estimulando a formação de coalizões de poder
regionais que acabarão desmembrando aos
poucos o seu poder imperial, como aconteceu com o império romano. Por outro
lado, a nova engenharia econômica mundial deslocou o centro da acumulação
capitalista e transformou a China numa
economia com poder de gravitação quase equivalente ao dos Estados Unidos. Esta
nova geo-economia internacional intensifica a competição capitalista e já deu início
à uma "corrida imperialista", cada vez intensa na África e na América
do Sul, aumentando a possibilidade e o número dos conflitos localizados entre
as grandes potências. Além disso, o poder imperial norte-americano deverá
enfrentar uma perda de legitimidade crônica dentro dos EUA, porque a
diversidade e a complexidade nacional, étnica e civilizatória do seu império é
absolutamente incompatível com a defesa e a preservação de qualquer tipo ou
sistema de valores universais, como pretendem os norte-americanos. Daí o aumento das divisões, cada vez mais
profundas, dentro do establishment da política externa dos EUA, e também dentro
da sociedade americana, com aumento da radicalização das posições e conflitos,
como no caso do Tea Party, e das manifestações Madison, Wisconsin etc. De
qualquer forma, é possível dizer, com relação ao futuro, que não existe nenhuma
lei que defina a sucessão obrigatória e a data do fim da supremacia americana.
Mas é absolutamente certo que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não
transformará automaticamente a China numa potência global nem, muito menos, no
líder do sistema mundial. Além disso, é
possível afirmar que terminou definitivamente o tempo dos pequenos países
conquistadores. O futuro do sistema mundial envolverá, daqui para frente, uma
espécie de guerra de posições permanente entre grandes países continentais,
como é o caso pioneiro dos EUA, e agora é também o caso da China, Rússia, Índia
e Brasil.
O sr. tem afirmado que a partir dos anos 1970, depois da
consolidação do novo sistema monetário internacional "dólar
flexível", os EUAs conquistaram um poder sem precedentes no capitalismo.
Mas a crise financeira recente não expôs fragilidades desse sistema? Não há um
declínio nessa hegemonia?
É verdade que depois
da crise dos anos 70, a política monetária dos EUA, junto com a desregulação
dos seus mercados financeiros, contribuíram decisivamente para o nascimento do
novo sistema monetário internacional dólar-flexível, que já dura mais do que o
sistema de Bretton Woods. E não há dúvida de que esse novo sistema transferiu
para os Estados Unidos um poder monetário e financeiro sem precedente na
história da economia mundial. Simplesmente porque, segundo as novas regras
que não foram consagradas por nenhum tipo de acordo internacional, os EUA
passaram a arbitrar simultaneamente o valor da sua moeda, que é nacional e
internacional a um só tempo, junto com o valor dos seus títulos da dívida, que absorvem a poupança de todo o mundo e
servem de âncora para o próprio sistema liderado pela moeda norte-americana. E
finalmente, como consequência, os EUA podem redefinir, a cada momento, o valor
das suas próprias dívidas, sem que seus credores possam reclamar sem sair
perdendo. Nesse sistema, toda crise financeira da economia americana acaba afetando,
em maior ou menor grau, a economia mundial, através da própria corrente
financeira global do dólar flexível. Estas
crises se repetirão mas elas não são necessariamente um sinal de fragilidade.
Ás vezes, podem ser até um sinal de poder e o início de um novo ciclo
expansivo. De qualquer maneira, estas crises não deverão alterar a hierarquia
econômica internacional, enquanto o governo e os capitais americanos puderem
repassar os seus custos, para as demais potências econômicas do sistema.
Aí, o conceito de hegemonia é extremante amplo e gelatinoso.
Vai desde o exercício puro e simples da supremacia militar até a ideia de
liderança econômica e moral dos povos. Acho
que o poder global dos EUA, hoje, já não tem a ver com o sentido gramsciano de
hegemonia. Trata-se de um poder imperial global, militar e financeiro. Ele
inclui a possibilidade e a necessidade destas crises, que inclusive podem
acabar resultando numa escalada ainda mais ampla de poder e riqueza _como
aconteceu com os EUA, depois da crise dos anos 70 do século passado. Com
exceção de um pequeno período de alguns poucos anos na década de 1990, nunca
ninguém acreditou que o mundo fosse unipolar. Do meu ponto de vista, dentro do
sistema inter-estatal em que vivemos, o conceito de multipolaridade é
rebarbativo e tem pouco relevância do ponto de vista teórico. A despeito de que
seja um termo útil no mundo diplomático.
O dinamismo da China não trará necessariamente consequências
geopolíticas? Ela não deverá abandonar paulatinamente sua posição de fragilidade
diplomática por uma ação mais enfática na diplomacia mundial? É possível
enxergar a China como potência hegemônica mundial?
Hoje não há duvida
que a grande novidade dentro do sistema mundial é a expansão econômica da
China, e a sua disposição crescente de lutar pela hegemonia política e militar
regional, na Ásia e no Pacífico Sul. Mas do ponto de vista geopolítico, o
mais provável - nas próximas duas décadas pelo menos _ é que a China se
restrinja à esta luta pela hegemonia regional, mantendo-se fiel à sua
estratégia atual de não provocar nem aceitar nenhum tipo de confronto fora
dessa sua zona de influência. Mas se a China seguir o caminho de todas as
grandes potências do sistema inter-estatal capitalista, em algum momento
futuro, terá que combinar a sua nova centralidade econômica mundial com algum
tipo de projeção do seu poder político e militar para fora da sua própria
região imediata. Mas há que ter em conta que a China tem uma posição
geopolítica desfavorável, com um território interior amplo e cercado e uma
fronteira marítima muito extensa, não contando ainda com um poder naval capaz
de se impor ao controle norte-americano do Pacífico Sul. Sem poder naval, a China não irá muito longe. E tomarão muitos
anos ainda para que a China venha a ter uma capacidade naval capaz de ameaçar o
controle marítimo global da marinha norte-americana. O próprio Japão tem uma
capacidade naval maior do que a China. E,
com certeza, os EUA deverão incentivar o aumento do poder militar do Japão e da
Coréia, com vistas a um equilíbrio de poder regional, que contenha a China
dentro de sua própria região.
Como o sr. observa a posição europeia nesse jogo de poder?
Depois de 1991, aumentou o número de sócios da União
Europeia e a extensão territorial coberta pela Otan. Mas a União Europeia está cada vez mais fraca, dividida e desorientada
sobre como conduzir seus assuntos internos e sobre como se reinserir no novo
sistema internacional, depois do fim da guerra fria e da reunificação da
Alemanha. Está ficando cada vez mais claro qual a verdadeira causa desta
perda de rumo: a União Europeia não dispõe de um poder central unificado e
homogêneo, capaz de definir e impor objetivos e prioridades estratégicas, ao
conjunto dos seus associados. Além disto, ela está cada vez mais dividida entre
os diferentes projetos para a Europa: da França, Grã-Bretanha e Alemanha, que
são seus Estados líderes e que têm entre si divergências estratégicas
seculares. Divergências que ficaram adormecidas até o fim da Guerra Fria, mas
que reapareceram depois com a reunificação da Alemanha e o ressurgimento da
velha Rússia dentro do cenário geopolítico europeu. Com a sua reunificação, a Alemanha se transformou na maior potência
demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa mais
autônoma, centrada nos seus próprios interesses nacionais. E, nesta linha, vem
se envolvendo cada vez mais com a hegemonia da Europa Central. Ao mesmo tempo,
vem estabelecendo laços cada vez mais extensos com a Rússia. Uma estratégia que
recoloca a Alemanha no epicentro da luta pela hegemonia dentro de toda a
Europa, ofusca o papel da França e desafia o americanismo da Grã Bretanha.
Nos próximos anos, não é impossível que Alemanha e Rússia
busquem uma aproximação mais estreita, uma vez que a Rússia é a maior fornecedora
de energia da Alemanha e de toda a Europa, além de ser a segunda maior potência
atômica do mundo. E a Alemanha tem condições de fornecer à Rússia a tecnologia
e os capitais de que necessita para recuperar o dinamismo econômico
indispensável à uma grande potência.
Esta aproximação afetará radicalmente o futuro da União Européia e de suas
relações com os Estados Unidos. Não é improvável que traga de volta a
competição geopolítica dos Estados europeus que foram os fundadores do atual
sistema mundial.
E a atual crise econômica na Europa? O sr. acha que o euro
sobreviverá?
A atual crise econômica européia não é apenas financeira nem
se restringe à insolvência de alguns Estados de menor importância econômica
dentro da comunidade. Do meu ponto de
vista, se trata de uma crise monetária e de insolvência do próprio euro, uma
moeda que é emitida por um Banco Central metafísico, que não pertence a nenhum
Estado nem está associado a nenhum Tesouro Central. O novo sistema
monetário europeu começou a ser construído com o Tratado de Maastricht, em
1992, e culminou com a criação do Euro, em 2002. Baseado na suposição dos dirigentes europeus de que esta nova moeda
global conduziria à criação de um poder central capaz de geri-la. Mas até
hoje o euro funcionou como uma espécie peculiar de moeda semi-privada e
inconclusa, sendo aceita com base na crença privada e na certeza pública de que
o BCE e a Alemanha cobririam todas as dívidas emitidas pelos 16 Estados membros
da eurozona. Como ocorreu até 2008, permitindo que todos estes países
praticassem taxas de juros quase iguais às da Alemanha, apesar da sua imensa
desigualdade de poder e riqueza. Esta
situação mudou depois do colapso financeiro de 2008, quando a primeira-ministra
alemã, Ângela Merkel, estabeleceu o novo princípio de que cada país europeu
teria que ser responsável, a partir daquele momento, pelos seus próprios bancos
e pela cobertura de suas dividas soberanas. A consequência imediata da nova
posição alemã foi a crise de insolvência de alguns governos da Europa Central,
no ano de 2009, contornada pela intervenção do FMI. No início de 2010,
entretanto, a denúncia do novo governo socialista da Grécia, de que o déficit
orçamentário grego do ano anterior havia sido maior do que o publicado
inicialmente, serviu como estopim de uma nova crise. Essa crise foi magnificada
pelo veto alemão, durante seis meses, a qualquer tipo de ajuda comunitária ao
governo grego. Até o momento em que a situação da Grécia ameaçou se estender a
outros países endividados e acabou atingindo a própria credibilidade do euro.
Isso obrigou a Alemanha a aceitar a
aprovação apressada do Fundo Europeu de Estabilização Financeira, com
capacidade anual de mobilização de até 750 bilhões de euros. Valor suficiente
para contornar a crise imediata, mas incapaz de reverter a desmoralização do
sistema monetário europeu, que foi criado em 2002, sob a tutela alemã. Para
corrigir esta "falha de fabricação" do euro, a França propôs a
criação de um governo econômico europeu, que não foi aceito pela Alemanha. O governo
alemão, por sua vez, propõe, sem o apoio francês, a criação de um Fundo
Monetário Europeu, para exercer o controle rigoroso da disciplina fiscal da
eurozona, com o poder de expulsão dos faltosos. O impasse permanece, mas, assim mesmo, no curto prazo, se impôs a
posição alemã, favorável a um ajuste fiscal draconiano de todos os países
incorporados à zona do euro. Como o ajuste está sendo aplicado em economias
que já estão estagnadas e com altas taxas de desemprego, é como colocar
gasolina na fogueira e apostar numa profunda e prolongada recessão como fizeram
os EUA no início da crise da década de 1930. Mas nada disto resolverá o
problema da insolvência do euro, porque a moeda europeia só terá valor efetivo
no momento em que for lastreada por um poder e por um tesouro central capazes
de assumir a responsabilidade permanente pela sua sustentação, com base na sua
capacidade de tributação e endividamento. Se
isto não acontecer, e se os pequenos estados europeus não aceitarem a condição
de províncias fiscais da Alemanha, o sistema monetário europeu e o próprio
euro_ estão com seus dias contados.
Como o sr. avalia a aproximação entre EUA e Rússia?
Qualquer discussão
sobre o futuro desta relação entre EUA e Rússia tem que partir do fato que os
EUA seguirão sendo o pivot militar da Europa por muito tempo. Pelo menos
enquanto mantiverem o controle das forças da Otan e dos arsenais atômicos da
Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e Turquia. Neste sentido, a iniciativa ainda
está nas mãos dos EUA. E os EUA têm pelo menos duas grandes alternativas
estratégias possíveis com relação a como se conduzir com a Rússia. A primeira
alternativa é manter a estratégia clássica, definida por Alfred Mackinder, no
final do século 19. A mesma estratégia que foi seguida pela Grã-Bretanha,
durante o século 19, e que foi mantida pelos EUA, depois do fim da Segunda
Guerra Mundial: cercar e Rússia e
impedir de todas as maneiras a sua aproximação da Alemanha. Esta foi de
novo a opção dos EUA, depois do fim da guerra fria, com a incorporação militar
da Europa Central à Otan e o estabelecimento de bases militares americanas nos
territórios da Ásia Central, como forma de apoio às guerras do Iraque e do
Afeganistão. Mas existe a possibilidade de uma segunda alternativa, mais
inovadora e ousada, que poderia redesenhar o mapa geopolítico da Europa e do
mundo, com efeitos imediatos sobre a geopolítica da Ásia Central e do Oriente
Médio. Nesse caso, os EUA promoverão uma
acordo de médio prazo de pacificação da fronteira russa, junto com uma acomodação
negociada com o Irã, envolvendo o apoio da Rússia e a simpatia implícita da
Alemanha. Sendo assim, a Rússia daria uma contribuição decisiva para a
estabilização da Ásia Central e do Oriente Médio. Neste caso, através de uma
negociação envolvendo o Irã e a Turquia, com vistas à construção de um novo
equilíbrio de poder regional. Em troca
disto, a Rússia teria o apoio norte-americano para retomar sua zona de
influencia, e reconstruir sua hegemonia nos territórios perdidos depois da
guerra fria. Desde que fosse sem o uso das armas, pelo caminho do mercado e das
pressões diplomáticas, como lhes foi permitido e aconteceu com a Alemanha e o
Japão, a partir da década de 1950. Esta aliança estratégica com a Rússia
ajudaria a bloquear a expansão chinesa, e envolveria o apoio econômico
americano ao desenvolvimento do capitalismo russo, com vistas à sua superação
do seu viés atual, de natureza primário-exportadora. Mas não há que esquecer
que Roosevelt tentou levar à frente uma estratégia parecida de incorporação da URSS,
em 1945. Mas sua proposta foi atropelada pela sua morte e pela estratégia
desenhada por Churchill e Truman, que levou à guerra fria. De novo, o projeto
de Barack Obama pode revolucionar a geopolítica mundial, mas também pode ser
atropelado pelas mudanças presidenciais que ocorrerão nos EUA e na Rússia, no
ano de 2012. Mas, antes disso, o grande jogo de Barack Obama pode escapar-lhe
ao controle, porque os EUA podem não conseguir conter ou controlar todas as
forças sociais e políticas despertas, ou estimuladas, por esta gigantesca
mudança geopolítica, dentro de cada um dos países envolvidos, na Ásia Central,
no Oriente Médio e no Norte da África.
As crises capitalistas têm muitas vezes desaguado em guerras
de grandes proporções. O sr. enxerga essa possibilidade?
Acho que devem
multiplicar-se os conflitos localizados dentro do sistema mundial, envolvendo
sempre os EUA, de uma forma ou outra. Mas não vejo no horizonte a
possibilidade de uma grande guerra hegemônica do tipo das duas grandes guerras
mundiais do século 20.
A América Latina poderá deixar sua condição tradicional de
periferia exportadora para as grandes potências?
Na segunda década do
século 21, depois de ultrapassados os efeitos imediatos da crise de 2008, o
mais provável é que a América do Sul se mantenha na sua condição tradicional de
periferia econômica exportadora. Mesmo quando se ampliem e diversifiquem
seus mercados na direção da Ásia e da China. Para mudar essa rota, seria
necessário uma decisão de Estado e uma capacidade coletiva de manter em pé o projeto integracionista,
independentemente dos conflitos e divergências locais e das próprias mudanças
futuras de governo. Além disso, seria preciso levar à frente a integração da infraestrutura física energética do
continente e desenvolver cada vez mais o seu mercado interno, com a redução da sua dependência macroeconômica às
flutuações dos mercados compradores e dos preços internacionais. Nesse ponto,
não existe meio termo: os países
dependentes da exportação de produtos primários, mesmo no caso do petróleo,
serão sempre países periféricos, incapazes de comandar sua própria política
econômica, e incapazes de comandar sua participação soberana na economia
mundial. De qualquer maneira, o futuro da América do Sul será cada vez mais
dependente das escolhas e decisões tomadas pelo Brasil. E o tempo urge porque
se o Brasil seguir submetido aos desígnios dos mercados internacionais se
transformará, inevitavelmente, numa economia exportadora de alta intensidade,
de petróleo, alimentos e commodities, uma espécie de periferia de luxo das
grandes potências compradoras do mundo. Como foram, no seu devido tempo, a
Austrália e Argentina ou o Canadá, mesmo depois de industrializado. E se isto
acontecer, o Brasil estará condenando o resto da América do Sul à sua condição
histórica secular, de periferia primário-exportadora da economia mundial.
Como deverá evoluir a relação do Brasil com os EUA?
Hoje, o Brasil é o
único país da América do Sul que tem capacidade e possibilidade de construir um
caminho novo dentro do continente, combinando indústrias de alto valor agregado
com a produção de alimentos e commodities de alta produtividade, sendo, ao
mesmo tempo, auto-suficiente do ponto de vista energético. Entretanto, esta
não é uma escolha puramente técnica ou econômica. Ela supõe uma decisão
preliminar, de natureza política e estratégica, sobre os objetivos do Estado e
da inserção internacional do Brasil. E, neste caso, existem duas alternativas
para o Brasil: manter-se como sócio
preferencial dos Estados Unidos na administração da sua hegemonia continental,
ou lutar para aumentar sua capacidade de decisão estratégica autônoma, no
campo da economia e da sua própria segurança, através de uma política hábil e
determinada de complementaridade e competitividade crescente com os Estados
Unidos, envolvendo também as demais potências do sistema mundial, no
fortalecimento da sua relação de liderança e solidariedade com os países da
América do Sul. Seja como for, é absolutamente certo que as escolhas
brasileiras serão decisivas para o futuro da América do Sul.
Por outro lado, entre as chamadas potencias emergentes ou
continentais, como a China, Índia e, talvez, Turquia, Irã e Indonésia, o Brasil é o país com maior potencial de
expansão pacífica, dentro da sua própria região. Com a diferença essencial
de que seu principal competidor na América do Sul são os próprios Estados
Unidos. Mas, ao mesmo tempo, a expansão do Brasil, dentro e fora da América do
Sul, contou até aqui com a vantagem de ser uma potência desarmada, porque de fato está situado na zona de proteção
atômica incondicional dos Estados Unidos. Além disso, Brasil também usufruiu da
condição de país ou nação formada dentro da mesma matriz cultural e
civilizatória que os EUA. Mas chegará o momento em que o Brasil terá que tomar
algumas decisões fundamentais com relação a estes dois pontos que favoreceram
até aqui a expansão da sua influencia internacional. Em primeiro lugar, terá que definir o seu próprio projeto mundial e sua
especificidade com relação aos valores, diagnósticos, e posições dos europeus e
norte-americanos, com relação aos grandes temas e conflitos da agenda
internacional. E, em seguida, o Brasil terá que decidir se aceita ou não a
condição militar de aliado estratégico dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da
França, com direito de acesso à tecnologia de ponta como no caso da Turquia ou
de Israel, por exemplo mas mantendo-se na zona de influência, proteção e
decisão estratégica e militar dos Estados Unidos e de seus principais aliados
europeus. Ou seja, o Brasil terá que decidir o seu lugar no mundo, a partir do
seu pertencimento originário à tradição
européia e cristã, que o distingue e distancia inevitavelmente, das outras
tradições e potências continentais que deverão estar competindo com os Estados
Unidos e entre si pela liderança mundial nas próximas décadas. E terá que
decidir se quer ou não, ter algum dia a capacidade de sustentar suas posições fora da América do Sul com seu próprio poder
militar.
Qual a importância do Mercosul?
O Brasil controla atualmente metade da população e do
produto sul-americano, é hoje o player regional mais importante no tabuleiro
geopolítico da América do Sul. Vem tendo uma presença cada vez mais afirmativa,
mesmo na América Central e no Caribe. O Brasil aceitou o comando da missão de
paz das Nações Unidas, no Haiti, tomou uma posição decidida a favor da
reintegração de Cuba na comunidade americana e tem defendido, em todos os foros
internacionais, o fim do bloqueio econômico à Cuba. Ao mesmo tempo, tem
exercido uma razoável influência ideológica sobre alguns governos de esquerda
da América Central e tomou uma posição rápida e dura frente ao golpe de Estado
militar de Honduras, em junho de 2009, e na tensão com os Estados Unidos, com
respeito à coordenação da ajuda ao Haiti, no terremoto de Porto Príncipe, no
início de 2010. Mas apesar do seu maior
ativismo diplomático, o Brasil ainda não tem possibilidade de competir ou
questionar o poder americano, no seu mar interior caribenho. Na América do Sul,
entretanto, o Brasil tem demonstrado, nestes últimos anos, vontade e decisão de
defender seus interesses e o seu próprio projeto de segurança e de integração
econômica do continente. Com a expansão do Mercosul, a criação da Unasul e
do Conselho Sul-Americano de Defesa, o
Brasil contribuiu para o engavetamento do projeto da Alca e reduziu a
importância do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e da Junta
Interamericana de Defesa, que contam com o aval dos Estados Unidos. Além
disto, o Brasil teve uma participação ativa e pacificadora nos conflitos entre
Equador e Colômbia e entre Colômbia e Venezuela. E fez uma intervenção discreta
e eficiente para impedir que o conflito interno da Bolívia se transformasse
numa guerra de secessão territorial na sua própria fronteira e bem no coração
da América do Sul. Além disto, em 2009,
o Brasil assinou um acordo estratégico militar com a França, que deverá alterar
a relação do Brasil com os EUA e transformar o país, em alguns anos mais, na
maior potência naval da América do Sul, com capacidade simultânea de construir
submarinos convencionais e atômicos e de produzir os seus próprios caças
bombardeiros. Essa decisão não caracteriza uma corrida armamentista entre o
Brasil e seus vizinhos do continente nem, muito menos, com os EUA. Mas sinaliza
uma mudança da posição internacional brasileira e uma decisão brasileira de
aumentar sua capacidade político-militar de veto, dentro da América do Sul, com
relação às posições norte-americanas.
Nos momentos de crise forte não faltam os que afirmam
vislumbrar a "crise final do capitalismo". Immanuel Wallerstein, por
exemplo, acha que "a civilização capitalista chegou ao outono de sua
existência". Por que o sr. discorda dessa tese?
Acho que já expus meu ponto de vista nas respostas
anteriores. Mas podemos voltar ao assunto de forma mais direta e clara. É
verdade que na crise dos anos 70 do século passado falou-se muito de fim da
hegemonia americana e, inclusive, em alguns casos, em crise estrutural ou final
do próprio capitalismo. E, no entanto,
hoje está claro que a crise dos anos 70 não enfraqueceu o poder americano.
Muito pelo contrário, transformou-se no ponto de partida de uma escalada no
processo de acumulação vitoriosa do poder e da riqueza dos EUA, em escala
planetária. E, agora, de novo, neste início do século 21, voltou-se a falar
de uma crise terminal do poder americano e do capitalismo. Mas não existem
evidências convincentes de que este colapso esteja ocorrendo ou vá ocorrer nos
próximos tempos. A crise hipotecária e financeira americana, de 2007/2008 não
se transformou numa crise econômica global. E não é provável que ela possa
repetir, a médio prazo, a crise da década de 1930 ou, mesmo, a da década de
1970. O fracasso político norte-americano no Iraque não diminuiu o poder
militar dos Estados Unidos, que segue sendo muito superior ao de todas as
demais potências juntas. A economia norte-americana segue sendo a mais poderosa
do mundo e mantém sua capacidade de inovação. Os Estados Unidos seguem
controlando cerca de 70% de toda a informação produzida e distribuída ao redor
do mundo. A moeda internacional segue sendo o dólar. O déficit externo não
ameaça os Estados Unidos neste novo padrão monetário internacional
dólar-flexível. E os Estados Unidos não parecem estar sem os "os meios e a
vontade de continuar conduzindo o sistema de Estados na direção que seja
percebida como expandindo não apenas o seu poder, mas o poder coletivo dos
grupos dominantes do sistema", como pensava Giovanni Arrighi. As
dificuldades políticas e econômicas dos Estados Unidos, no final da primeira
década do século 21, poderão se prolongar e aprofundar. Mas, do nosso ponto de
vista, com certeza não se trata do fim do poder americano nem, muito menos, da
economia capitalista.
De qualquer maneira, o problema de fundo de todas estas profecias
terminais não está na sua leitura imediata da conjuntura internacional deste
início do século 21. Seu ponto fraco
está na confusão que fazem entre planos e tempos históricos diferentes. O
historiador francês Fernand Braudel falava da existência de pelo menos três
tempos históricos diferentes: o tempo breve, da vida política imediata, do
tempo cíclico, da vida econômica, e da longa duração, das grandes estruturas
históricas. Sem distinguir estes planos e estes tempos diferentes pode-se
confundir, com facilidade, o fim de um ciclo normal da economia capitalista com
uma crise estrutural ou terminal do próprio capitalismo. E pode se considerar
catastrófico um declínio relativo de um país que tenha acumulado uma quantidade
excepcional poder, após uma guerra vitoriosa, como foi o caso dos Estados
Unidos, depois de 1945, e depois de 1991. A
partir deste momento vitorioso, é inevitável que a potência ganhadora perca
posições relativas dentro da hierarquia mundial do poder e da riqueza, na
medida em que avança a reconstrução dos Estados e das demais economias que
foram derrotadas ou foram destruídas pela guerra. Nestes períodos de
recuperação, a velocidade da reconstrução física e militar e do crescimento
econômico dos derrotados ou destruídos tende ser maior do que o da potência
líder. O que não se percebe, muitas vezes, é que a reconstrução e
aceleração do crescimento destes países é, ao mesmo tempo, indispensável, para
a acumulação de poder e riqueza da potência que está em "declínio
relativo". E que esta potência em
declínio é indispensável para o ascenso relativo das outras potências que estão
se aproximando ou ultrapassando a potência líder. Por isso, se pode falar
de um "declínio relativo" do poder americano, com relação à China,
como já se falou do declínio do poder econômico norte-americano, com relação ao
Japão e à Alemanha, na década de 1970. Mas esse declínio relativo dos Estados
Unidos não significa, necessariamente, um colapso do seu poder econômico e da
sua supremacia mundial. De qualquer
maneira, por trás da visão de Wallerstein, como da minha própria, existem
teorias diferentes sobre a origem e a dinâmica do sistema mundial.
Wallerstein e Arrighi vêem a história mundial como uma sucessão de ciclos
hegemônicos ou de acumulação de capital. Enquanto eu vejo este mesmo sistema
como um "universo" em expansão contínua. Onde todos os Estados que
lutam pelo poder global, em particular as grandes potências, estão sempre
criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra, sem perder
sua preeminência hierárquica dentro do sistema. A visão deles está mais próxima da biologia e dos seus ciclos vitais.
Enquanto a minha está mais próxima da física termodinâmica e da teoria das
estruturas dissipativas.